Entendendo o “tiro na cabecinha” (semanticamente)

A VEJA desta semana fez uma matéria ralhando feio com o Wilson Witzel, governador do Rio, por ter criado a “política do tiro na cabecinha” e com isso ter matado acidentalmente a menina Ágatha Félix.

Aqui vou tratar mais de semântica e interpretação de texto do que de política, e vejo vários problemas aí:

  • Não existe “política do tiro na cabecinha”. Essa foi uma frase de efeito extremamente visual/persuasiva do Witzel, que com isso se fez conhecer no país inteiro. A coisa claramente funcionou, porque todo mundo só fala de “tiro na cabecinha”.
  • Mas ok, vamos reduzir a coisa toda de forma que jornalistas entendam e vamos supor que o governador tenha de fato dado a ordem literal: “ei, polícias, deem tiros na cabecinha”. Vocês lembram a frase completa? Lembram o que veio depois de “tiro na cabecinha”? A frase continua assim: “ … e… fogo! … Se estiver mirando em alguém, tem de receber tiro na cabeça na hora.”
  • Vamos lá, repetindo: a ideia do governador é simples e fácil de entender: tiro na cabeça de quem estiver armado e mirando em alguém. Ok? Deu para compreender somente este trecho? De novo: estou falando em palavras, não em política. Prossigamos então.
  • Se alguém está ARMADO e MIRANDO EM ALGUÉM, soa razoável para tipo 90% das pessoas concordar que essa pessoa deve ser, no mínimo, detida. No mínimo. Alguém ARMADO e MIRANDO EM ALGUÉM não tem boas intenções. Correto? Podemos assumir esta premissa? Então beleza. Prossigamos.
  • Não vou entrar no mérito sobre se é certo ou não uma política de atirar em quem está armado. Não sou expert em segurança, não sei qual seria a coisa certa a fazer, e minha opinião não importa para o grande esquema das coisas. A única coisa que eu sei é aquilo que já vimos mil vezes em filmes: geralmente, trata-se de um trabalho de inteligência, que requer duas coisas: 1) saber os movimentos do inimigo, seu posicionamento etc. ; 2) colocar um sniper em posição, que mira “na cabecinha” do terrorista e o mata a quilômetros de distância. Certo? Essa é a ideia visual da coisa, portanto, do que significa “tiro na cabecinha”. Repetindo: trabalho de inteligência, para saber onde está o bandido, e alguém à distância, um sniper, atirando *somente* na pessoa armada. Podemos concordar que é isso que 99% das pessoas deveriam interpretar da expressão “tiro na cabecinha”? (de novo: não cabe a mim dizer o que é certo ou errado aqui, estou apenas explicando a ideia visual da expressão).
  • Sendo assim, podemos concluir que o que está acontecendo no Rio de Janeiro, com crianças sendo mortas a esmo por balas perdidas, é TUDO MENOS “política do tiro na cabecinha”.
  • Podemos concordar que um “tiro na cabecinha” é um tiro INTELIGENTE e DIRECIONADO a alguma cabecinha? E não troca aleatória de tiros? Podemos assumir isso, certo?
  • Se houvesse DE FATO uma “política do tiro na cabecinha” no estado do Rio de Janeiro, nós teríamos uma diminuição drástica de mortes por bala perdida. Afinal, repito, este é um tiro sob ordem de alguém superior, que fez o trabalho de inteligência. É um tiro MIRADO. De sniper. Na cabecinha. Sob ordens inteligentes. Certo? O foco estaria em matar pessoas armadas, e não inocentes.
  • A VEJA (e toda a mídia) erra ao partir do princípio de que Witzel implementou sua famosa frase, quando aquilo era puro factoide/fake news.
  • A VEJA (e toda a mídia) deveria criticar o Witzel justamente por ele NÃO TER IMPLEMENTADO ESSA POLÍTICA do “tiro na cabecinha”. Deveria ter cobrado dele JUSTAMENTE o emprego de snipers e de inteligência. Deveria cobrar dele treinamento de policiais, para que estes melhorem sua mira. Deveria cobrar dele que não premie policiais que entram em comunidade atirando sem pensar. Porque isso é justamente o CONTRÁRIO do “tiro na cabecinha”.
  • A ideia de snipers atirando “na cabecinha” é fabulosa justamente pelo que cria no imaginário das pessoas: PUXA, FINALMENTE AGORA A POLÍCIA VAI PENSAR E ATIRAR NA PESSOA CERTA. Todo mundo quer isso. Todo morador de comunidade quer justamente isso: policiais atirando *em bandido*.
  • Aliás, arrisco a dizer que qualquer pessoa razoável concordaria com a ideia de que o policial só deveria atirar em bandido quando soubesse o que está fazendo. Isso é bem óbvio.
  • O que NÃO PODE é a política do policial que atira a esmo. Isso é o OPOSTO de uma suposta “política do tiro na cabecinha”, que exige um criterioso trabalho de inteligência e excelente pontaria.

Meu ponto semântico todo é: quando uma revista culpa a política do Witzel do “tiro na cabecinha” pela morte de uma criança, está fazendo tudo errado. E não vai adiantar de nada. Não vai fazer nem cosquinha no governador. Por quê?

Porque a ideia do “tiro na cabecinha” é imbatível e quase unânime. A reportagem não vai dissuadir o Witzel e não vai mudar a opinião de quem é a favor de bandido morto – afinal, muita gente é contra a morte de inocentes e a favor da morte de bandidos. Esta é uma ideia que não some, mesmo que crianças estejam sendo mortas a esmo. Todo mundo quer menos bandidos no mundo.

Sabe o que reportagens assim causam? Você já viu isso antes: todas as autoridades vão ficar repetindo loucamente que este foi um caso “isolado”. E toda vez que morrer um inocente vai ser a mesma coisa.

Quando você critica a coisa errada, sua mensagem não vai adiante. E vai levar a uma reação errada (“este é um caso isolado…”).

O que deve ser criticado aqui é justamente a política do “tiro a esmo”, e não a do “tiro na cabecinha”.

Se o “tiro na cabecinha” estivesse DE FATO em prática, Ágatha não estaria morta.

Então fica a dica aqui: se quiser atingir o Witzel, acuse-o de fake news por ter falado em “tiro na cabecinha”, mas não ter treinado policiais. Por ter prometido inteligência e snipers e ter entregado policiais estressados andando na rua e atirando em qualquer um que eles considerarem suspeito. Isso não é “política do tiro na cabecinha”. Isso é tiro a esmo e falta de noção (alguns chegam a chamar de “genocídio”).

A mídia ERRA quando valida a existência de um factoide. Enquanto não cobrarem o governador sobre essa falácia do “tiro na cabecinha”, nada vai mudar.

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