Editando a realidade dos fatos
Aconteceu uma coisa interessante durante a transmissão do caucus republicano do Iowa no início dessa semana. No canal MSNBC, a apresentadora Rachel Maddow anunciou, visivelmente tensa e cheia de malabarismos nas palavras, que eles optariam por NÃO mostrar o discurso do vencedor (Donald Trump) ao vivo porque não queriam “transmitir conscientemente coisas inverídicas” (no original, “knowingly broadcast untrue things”).
Vamos parar um pouco para analisar isso.
1.
Para além da óbvia posição pró-democrata que a MSNBC sempre teve, a decisão de NÃO transmitir o Trump ao vivo abre toda uma nova coisa.
Vamos aos fatos:
– Trump traz audiência. MUITA audiência. Mesmo seus detratores assistem. É quase irresistível. A MSNBC está optando, portanto, por não mostrar algo que certamente traria audiência. Olha que interessante.
– Uma das coisas mais óbvias que o jornalismo de TV faz para chamar atenção é sobressaltar o seu telespectador. Por isso que a gente sempre vê história sinistra de motorista de Uber que sequestra passageiro, ladrões que dão golpe em velhinhos no banco etc. É um artifício comum para manter você estressado e sempre de olho nas notícias. Sendo assim, é claro que há total interesse por parte da MSNBC de alarmar quem está assistindo. Sua audiência, mais à esquerda, vai se estressar com o Trump, então como assim não vão passar o discurso?
– Transmissão ao vivo de político discursando sempre vai ser mil vezes mais interessante do que pundits falando e falando e falando sem parar a mesma coisa. É uma opção óbvia para o produtor/diretor.
O que está por trás dessa decisão, em termos de interesse jornalístico? É realmente não arriscar “transmitir conscientemente coisas inverídicas”?
É uma “censura do bem”? (isso existe?)
É um tiro no pé?
É a Trump Derangement Syndrome fazendo toda uma emissora tomar decisões equivocadas, tanto em termos midiáticos quanto financeiros?
Ou é para passar a ideia assustadora de que ele vai falar coisas tão horríveis, mas tão horríveis, que é melhor a gente nem ver? Hummm.
2.
Continuemos. Qual é o objetivo aqui?
– É para prejudicar o Trump? Creio que *não tão diretamente*, visto que sua audiência não vai votar no Trump anyway. Não ter seu discurso transmitido na MSNBC não vai tirar voto algum dele – pode até trazer votos, hehe.
– É para minimizar a vitória do Trump (que aconteceu em tempo recorde)? Pode ser que sim. Ao desprezar um discurso e sumir com ele da transmissão (veja bem, eles estão *cobrindo o caucus ao vivo*, com mesa de analistas, porcentagens na tela etc.), a ideia é esconder a vitória acachapante do ex-presidente a qualquer custo e o impacto disso na corrida eleitoral.
Quando um veículo de comunicação opta por não mostrar algo, é porque tomou uma decisão editorial: isso não é importante.
Olha só que curioso: o resultado do evento que eles estavam passando não foi importante para eles.
Vamos repetir aqui devagar.
- Você está com equipe completa cobrindo um evento.
- Trata-se de um evento com um resultado (um “vencedor”) no final.
- O vencedor vai falar. É tipo o ápice do evento.
- Mas o discurso do Trump não é importante editorialmente para você? Hmmm.
Quando você descarta o discurso do vencedor das primeiras primárias republicanas, o que você realmente está fazendo?
Você está dizendo que não só não gostou do resultado como não vai reconhecê-lo.
Você está conscientemente ignorando uma coisa gigantesca que está acontecendo na frente do seu nariz: Trump está de volta mais forte do que nunca.
É essa verdade chocante que a MSNBC parece querer esconder do seu público.
3.
Agora vamos analisar essa questão do “untrue things”. A apresentadora alega que, para não acabarem transmitindo “coisas inverídicas”, eles não iriam passar o discurso do Trump.
A transmissão na íntegra um discurso político é um dos raros momentos em que a TV não interfere na realidade. Se o canal mostrar do início ao fim, sem cortes marotos, você verá a coisa toda nua e crua, exatamente como ela está acontecendo, e sozinho poderá tirar suas próprias conclusões.
Essa também é a última razão de ser dos canais de TV: mostrar eventos ao vivo, como jogos de futebol, Olimpíadas etc. A televisão não serve para mais nada além disso, a meu ver.
Agora, se de repente nós temos uma emissora que está cobrindo um evento ao vivo e se recusa a transmitir seu ápice (o discurso do vencedor), temos um gigantesco tiro no pé proposital. E bizarro.
Isso porque, em geral, as pessoas não estão interessadas em ouvir comentaristas por horas e horas a fio. A TV fica lá de fundo até surgirem os números do caucus e o discurso. Isso é o que eu acredito que a imensa maioria das pessoas faça ao assistir a um evento assim.
Tenho curiosidade de saber quantos mudaram de canal nessa hora.
4.
Optar por só mostrar os “highlights” de um discurso é mexer na realidade. Quando você faz cortes marotos, é possível mudar todo o contexto de uma fala, deturpá-la e até mesmo criar inverdades.
A coisa vil aqui nessa história é a alegação da MSNBC de não querer “conscientemente transmitir coisas inverídicas”.
A MSNBC partiu do princípio de que o Trump só falaria “coisas inverídicas” e resolveu “pré-censurar”, em nome da verdade dos fatos. Isso é muito grave.
Sob essa argumentação, optou por só mostrar alguma coisa se houver algo ali que a emissora ache interessante para a sua audiência.
É a naturalização da realidade editada (editorializada?) dos fatos.
É como se dissesse: “nós vamos transmitir só aquilo que nós achamos que o Trump é, não o que ele realmente é, não se preocupem”.
É uma tomada de decisão ousada. A MSNBC compra a ideia de que seu público não está realmente interessado em fatos. O mundo real não seria bem-vindo lá, se isso significar Trump de novo como candidato republicano. Então é melhor “editar” essa parte dos fatos para só mostrar o que for a “verdade” da MSNBC.
Talvez os editores/produtores/diretores do canal acreditem piamente que têm a obrigação de fornecer ao público uma “verdade paralela”. Quem sabe ela se torna real?
Tem “método”, como dizem alguns? Não sei.
Não dá para afirmar que tem gente lá na cúpula da NBC esfregando as mãos e tramando: “bwahahahah, agora nós vamos criar nossa própria narrativa para promover uma agenda maquiavélica esquerdista…”.
É mais provável que isso tenha sido feito num nível inferior mesmo, com seus jornalistas todos apavorados e vítimas de Trump Derangement Syndrome.
(Enfim, não tem como a gente saber os bastidores dessa decisão.)
O que me preocupa, contudo, é o precedente aberto.
Daqui a dois anos a Globo pode querer fazer a mesma coisa.
Editorializar a realidade não deveria substituir fatos transmitidos ao vivo. Você espera esse tipo de coisa em programas de opinião, documentários sobre “a democracia resistir” (kkkkk!) ou até mesmo noticiários. Mas em tempo real?
A porteira está aberta.
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